quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Virá o dia...


Virá o dia em que ninguém se lembrará do bater ininterrupto da água sobre os guarda-chuvas, abafando o barulho das lágrimas e as ladainhas do padre. Conforta-os talvez, um pensamento animista há muito perdido na infância, no qual o universo sente a mesma dor, e , por solidariedade, chora também… A chuva cai e dilui a dor, torna-a difusa, pelo menos a quem assiste. Ao bater dos sinos, o universo cala-se e diminui o choro; fecham-se os guarda-chuvas a medo e um sentimento de comunhão envolve a multidão: sim, vamos lavar as lágrimas nesta chuva miudinha, partilhar o pão e o vinho deste sacrifício colectivo. Ilusão infantil que depressa se desfaz aos primeiros indícios de temporal… Não podia ter vindo em melhor hora, abafa o baque definitivo da terra a cair sobre o caixão e os gritos daqueles que vêem parte de si caída por terra. Pai, afasta de mim aquele cálice, e fujo de mansinho por entre a confusão. O ribombar de uma mota acorda em mim a vergonha do meu gesto… Virá o dia em que não poderei fugir nem esconder-me da morte. Sim… Virá. Mas não hoje.